A Constituição de 1988

Entre 1937 e 2016

Vinício Carrilho Martinez
Professor Associado da UFSCar
Head of BRaS Research Group –
Constitucional Studies and BRaS Academic Committee Member
Vinícius Alves Scherch
Advogado e Professor na Universidade Norte do Paraná – UNOPAR
Member of BRaS Research Group – Constitutional Studies

Em 2018 comemoramos 30 (trinta) anos da Constituição Federal de 1988, promulgada e apelidada de “Constituição Cidadã”, pois tem uma condição promotora da cidadania, com foco na identificação, defesa e promoção dos direitos fundamentais individuais e sociais. De natureza jurídica programática – construir e fortalecer a cidadania no bojo do Processo Civilizatório, vale dizer, com respeito integral aos direitos humanos – a Constituição Federal de 1988 alinha-se à propugnada Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948, declaração de direitos que, também em 2018, celebra 70 anos de orientação ética ao convívio humano social. Essa tendência já vinha expressa em outras constituições pelo mundo. A Constituição de Bonn, da Alemanha de 1949, pós-regime nazifascista, pactuou o Princípio Democrático, apontando que qualquer ação do Executivo ou do Legislativo que ferisse a democracia seria considerada crime. A Constituição Iugoslava (1953), seguida das constituições portuguesa (1976) e espanhola (1978), reafirmou os compromissos do Estado Social como caminho salutar de convívio ético e civilizatório, obrigando-se ao Poder Público patrocinar meios e mecanismos necessários e eficazes ao descortínio de formas incrementadas de sociabilidade.

Bases para um paralelo entre outorga e promulgação

Ainda que se possa afirmar que o constitucionalismo contemporâneo tenha se consolidado na figura das constituições garantistas, dotadas de direitos fundamentais sociais e matiz solidário, já que se abre o pensamento constitucional para o posicionamento da força normativa de seus preceitos[1], a Constituição Federal de 1937 (outorgada) se destaca pelo fato de se destoar das aberturas democráticas, sendo um documento imposto para sustentar o governo de Getúlio Vargas.


Como afirmou Konrad Hesse as “questões constitucionais não são questões jurídicas, mas sim questões políticas”, porque a Constituição expressa relações de poder (HESSE, 1991, p. 9).

Dessa forma, a diferença entre a Constituição Federal de 1937 e a Constituição de 1988 é que, enquanto aquela é semântica e não democrática, tendo servido apenas de instrumento de Poder, esta é robusta em suas disposições, demarca a passagem formal para a redemocratização do Estado e possui o status de Constituição Cidadã.

Essa última característica da Constituição Federal de 1988, aliás, não verte somente do fato de sua elaboração ter se dado pelas mãos de uma Assembleia Constituinte, que teve livre trânsito de qualquer do povo em seu processo de escrita, mas decorre principalmente de sua carga axiológica que palmeia valores sociais e garante sua normatividade.

É importante consignar que a medida de uma Constituição não se dá apenas pelo que está escrito, posto que decorre de modo especial dos compromissos que assume e das tarefas que impõe de forma vinculada aos Poderes, à sociedade e aos indivíduos. Desse modo, quando a Constituição Federal de 1988 estabeleceu seus objetivos no art. 3º buscou positivar a ideologia solidária como base hermenêutica de sucedâneos normativos e se colocando, do ponto de vista metodológico-formal, como documento jurídico superior do ordenamento.

Sem negar os fatores reais de poder (Realpolitik), a Constituição jurídica impõe sua força normativa viabilizando a construção do futuro a partir da singularidade do presente, porém sem ignorar os aspectos culturais, sociais, políticos e econômicos, vinculando o Estado, o intérprete e as pessoas a objetivos predeterminados – dos quais uma parcela é norma de aplicação clara e imediata e outra é por algumas doutrinas denominada de programas (SCHERCH, 2020, p. 149)

Negatividades históricas do Objeto Positivo da CF88

            Como vimos, uma forma de realçar o Objeto Positivo da CF88 é indicar algumas negatividades históricas aos preceitos ora afirmados. Um desses casos condiz com a Constituição de 1937, apelidada de Polaca[1], e que se centrou como Constituição Outorgada por Getúlio Vargas, em um moto-contínuo de retroafirmações políticas reafirmativas de verdadeiro Estado de Exceção. A Razão de Estado, ou melhor, o que deveria ser uma Justificativa Constitucional, transformou-se em simples desculpa para soterrar a cidadania, os direitos humanos e a democracia: o embate antitético entre integralistas (fascistas, desde ao menos 2016) e comunistas (hoje, todo o espectro da esquerda política) seria essa desculpa, o combustível, ao governo despótico. Tivemos aí, na luta política entre o Fascismo e a representação da classe trabalhadora, o respaldo legal (desculpa) anexado ao golpe do Estado Novo, impondo-se forte retrocesso ao Processo Civilizatório, notadamente, com o uso (abusivo) das forças policiais de repressão e a concentração do poder (de exceptio) que se seguiria ao fechamento do Congresso. De certa forma, nada que não se veria em 1964 e, após, já com a injunção do AI-5.


“Seguramente, a influência maior foi a da Constituição da Polônia, o que permitiu aos críticos e analistas da época denomina-la maliciosamente de ‘A Polaca” (BONAVIDES, 1991, p. 339).

Em 2016, apesar de se tratar de golpe (MARTINEZ, 2019), o modelo empregado foi muito diferente dos tipos clássicos de quartelada, manu militari que se impõe enquanto poder de exceptio (MARTINEZ, 2010). O objetivo, sem dúvida, foi o desfazimento das conquistas e das garantias sociais afinadas na Constituição Federal de 1988. Esse desfazimento, em curso desde 2017 com o governo Temer, aniquilou direitos sociais e trabalhistas, até que desagregou de modo avassalador muitos direitos e práticas sociais e políticas, restringiu direitos de participação e de representação social e política, judicializou a Polis, bem como reprimiu legítimos direitos políticos.

O intuito, como se vê, especialmente a partir de 2018-19, na esteira do governo Bolsonaro e de seu movimento social e político de seguidores (MARTINEZ, 2020a), aproveitando-se da pandemia, é a aniquilação do Objeto Positivo da CF88, notadamente, as garantias, os direitos, as liberdades e a responsabilidade pública. Desse modo, as próprias políticas públicas foram utilizadas a fim de se agravar os efeitos da COVID-19, pouco ou mal aplicando-se os já parcos recursos destinados à saúde pública – enquanto grande parte das nações faziam reservas de 2 ou 3 tipos de vacinas, além de termos feito apenas uma, sequer tivemos competência para adquirir seringas[1]. As políticas públicas, com forte tom, claras cores (coorte) fascistas, ainda poriam fogo nas florestas e nas reservas naturais.

Com o que se vê, pode-se reter a conclusão inicial de que as ações governamentais antipopulares, antirrepublicanas, antidemocráticas, fizeram refluir os direitos humanos, a cidadania participativa e a própria expectativa do direito democrático e humanizador. Ou seja, abalando-se o Objeto Positivo da CF88 atingiu-se em cheio o coração da Carta Política: a Força Normativa (HESSE, 1991) da capilaridade constitucional democrática e o conjunto amplo dos direitos fundamentais.


VARGAS, Mateus. Compra de seringas fracassa e Saúde garante menos de 3% do que precisa. UOL, Estadão, São Paulo, 29 dez. 2020. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2020/12/29/compra-de-seringas-fracassa-e-saude-garante-menos-de-3-do-que-precisa.htm.

Portanto, a exceção forjada caminhou mais próxima das formas de guerras híbridas (KORYBKO, 2018) e assim culminou, a partir de 2018 (MARTINEZ, 2020a), num formato próprio, nacional, de Fascismo (MARTINEZ, 2020b) ou de Necrofascismo, se contabilizarmos a somatória de táticas, meios e recursos da necropolítica (MBEMBE, 2018) ao genocídio planejado e executado, do povo, ao sabor da pandemia – especialmente de pobres, indígenas, quilombolas e negros[1] (MARTINEZ, 2021a).

            Neste sentido generalista e inicial – ou quase proverbial ao Fascismo Nacional ou Necrofascismo – não somente o coração da Carta Política de 1988 (MARTINEZ, 2021b) estaria fracionado, pois as equivalências às constituições autocráticas seriam de grande soma. Somas essas que – sob a “fumaça do bom direito” que ainda vigora nas vozes e ações democráticas e republicanas – seriam enfrentadas como se enfrentou a Polaca de 1937 e sua realidade de Estado de Exceção (AGAMBEN, 2002).

            Parece, olhando-se a contrapelo da História Constitucional, que a Polaca acertaria as contas com a Constituição de 1934 – a de menor duração na prática republicana brasileira – e aventaria conduções ou desconstruções sociais e humanizantes apontadas a partir de 2017. Vejamos o que nos diz o constitucionalista:


O artigo 115 da Constituição de 1934 levanta o brado a favor das novas ideias que hão de impor a remodelação do Estado e ditar a reforma social […] “conforme os princípios da justiça e as necessidades da vida nacional, de modo que possibilite a todos a existência condigna”. A seguir, nos artigos 116 e 117, o idealismo nacionalista da Constituição de 1934 se projeta em disposições que refletem por igual o teor intervencionista do Estado na mesma ordem econômica, ao asseverar que “a União poderá monopolizar determinada indústria ou atividade econômica” ou que “a lei promoverá o fomento da economia popular, o desenvolvimento do crédito e a nacionalização progressiva dos bancos de depósito” (BONAVIDES, 1991, p. 323).

A tonalidade fascista viria em seguida, ou estando já em curso, com o alinhamento ao regime nazifascista europeu que se armava para a proposta da Segunda Grande Guerra[1]. O germe do Fascismo Nacional faria sua aposta em 1937, sob o Estado Novo (de inegável condição de exceptio), com a Constituição Polaca, forjando-se os meios constitucionais para a tomada e manutenção do poder autocrático. Novamente, em semelhança histórica ou em paralelo negativo, de curto-circuito confiante na repetição histórica, sobretudo, à democracia e aos direitos fundamentais, a Polaca se aplicava (como em 2016) a recitar a ordem constitucional de 1916, e a propugnar em prática institucional pelo seu exato oposto. Os direitos de Weimar ainda ressoaram (em 1937 e em 2016) como informação e empuxo golpista: “Dizia-se que toda a legislação do Estado Novo estava comprometida com a tendência de um regime social democrático inspirado na República de Weimar, porém, a par das conquistas sociais patrocinadas pelo fundador do Estado Novo, o corpo de leis, a partir da Lei Maior, inspirava-se realmente nas instituições e na legislação nazi-fascista” (BONAVIDES, 1991, p. 343).


[ “O ranço fascista da deputação de classe, que entra qual apêndice na representação política da Nação parecia antecipar 1937 […] aquela reminiscência viva das ideias mais diletas do corporativismo de direita, em curso na Itália de Mussolini e na Península Ibérica, debaixo dos regimes de Franco e Salazar” (BONAVIDES, 1991, p. 323).

Havia ainda o temido artigo 171, que estava incluído no capítulo “Da defesa do Estado” e devia ser lido como se segue: “Na vigência do estado de guerra deixará de vigorar a Constituição nas partes indicadas pelo Presidente da República”. Ele era o verdadeiro AI-5 da época […] O parlamento não precisaria ser consultado para a decretação do estado de emergência ou de guerra, nem poderia suspendê-los […] O Artigo 170 consolida o arbítrio: “Durante o estado de emergência ou estado de guerra, dos atos praticados em virtude deles, não poderão conhecer os juízes e tribunais” […] Qual a lição que devemos tirar de tudo isso? De início, parece evidente a semelhança dos dispositivos constitucionais de 1937 com aqueles de que lançaram mão os militares no pós-64 (BONAVIDES, 1991, p. 332-333).

E qual é a Lição Constitucional que tiramos em 2021? A primeira e mais simples é notar que a forma autocrática, distorcida, oportunista de se lidar com o Direito, em 2016, tem raízes e infecção viral datados de 1937.

Afinal, o artigo 170 da CF88 (que ironia!?) não resta liquidado, o original artigo 171 da CF88 não foi revogado (EC 6, de 15/8/1995)[1], assim como o artigo 115 da Constituição de 1934? Como hipótese, a partir da leitura mais sistematizada do art. 171 da CF88, que era um tanto quanto prolixo, vemos ideais nacionalistas camuflados e, ao mesmo tempo, neoliberais do art. 172 e do art. 173. A questão desceu em hierarquia para a legislação ordinária e transformou o nacionalismo de senso republicano em algo desfronteiriço que favorece os conceitos indeterminados e desprotege o Brasil, já que o interesse nacional é facilmente colocado pelo chefe de Estado, para o bem ou para o mal, que sem o respaldo da Constituição se desemboca em arbítrio.


“Teor do dispositivo revogado: Art. 171 São consideradas: I – empresa brasileira […] II – empresa brasileira de capital nacional […] § 1º A lei poderá […] I – conceder a proteção e benefícios especiais temporários para desenvolver atividades consideras estratégicas […] II – estabelecer, sempre que considerar um setor imprescindível ao desenvolvimento tecnológico nacional […] a) a exigência de que o controle referido no inciso II do caput se estenda às atividades tecnológicas da empresa […] b) percentuais de participação, no capital […] § 2º Na aquisição de bens e serviços, o Poder Público dará atendimento preferencial, nos termos da lei, à empresa brasileira de capital nacional” (BARROSO, 2003, p. 735 – grifo nosso). Tratou-se de retirar, de vez, o nacionalismo já encostado em 1937 e em 1964.

Referências

AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.

BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.

HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991.

KORYBKO, Andrew. Guerras Híbridas: das revoluções coloridas aos golpes. São Paulo: Expressão Popular, 2018.

MARTINEZ, Vinício Carrilho. Estado de Exceção e Modernidade Tardia: da dominação racional à legitimidade (anti) democrática. 410 p. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Faculdade de Filosofia e Ciências, UNESP, Marília, 2010.

MARTINEZ, Vinício Carrilho Teorias do Estado – Ditadura Inconstitucional: golpe de Estado de 2016, forma-Estado, Tipologias do Estado de Exceção, nomologia da ditadura inconstitucional. Curitiba: Editora CRV, 2019.

­­­MARTINEZ, Vinício Carrilho Bolsonarismo: alguns aspectos político-jurídicos e psicossociais. Curitiba: Brazil Publishing, 2020a.

MARTINEZ, Vinício Carrilho Fascismo Nacional – Necrofascismo. Curitiba: Brazil Publishing, 2020b.

MARTINEZ, Vinício Carrilho Necrofascismo. Curitiba: Brazil Publishing, 2021.

MARTINEZ, Vinício Carrilho O Conceito de Carta Política na CF/88: freios político-jurídicos ao Estado de não-Direito. No prelo, 2021b.

MBEMBE, Achile. Necropolítica. São Paulo: N1 Edições, 2018.

SCHERCH, Vinícius Alves. Teoria da decisão judicial: influências das posições jusfilosóficas no cenário jurídico-político brasileiro. Londrina: Thoth, 2020.

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